Uma Perspectiva Contra-Hegemônica Sobre Aprendizagem Ao Longo Da Vida
Como descolonizar o lifelong learning
Aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning) está na moda, e não é de hoje.
Não é muito fácil nadar contra essa corrente, afinal, quem poderia facilmente elaborar argumentos para desqualificar a máxima “você deve aprender a vida toda, não só na escola?”
Que fique claro: sou um apaixonado por aprender. Acredito piamente na importância de construirmos trajetórias de aprendizagem dos 0 aos 150 anos.
Na verdade, fazemos isso pelo simples fato de existirmos – e claro que sempre podemos botar mais capricho e intencionalidade nesse processo.
Mas não consigo conter as palavras quando leio textos como o que segue abaixo, de autoria de Carlos Souza.
https://www.linkedin.com/pulse/lifelong-learning-para-todos-ou-poucos-carlos-souza/
O que me incomoda
A primeira frase do texto diz:
Se não adquirirmos as habilidades necessárias para sobrevivermos no mercado de trabalho, o avanço tecnológico nos tornará obsoletos.
Todo o texto segue nesse tom de ameaça, uma espécie de intimidação difusa que nos constrange a aprender desesperadamente porque senão seremos engolides pelos deuses do mercado e da tecnologia.
No mundo adulto, não há mais escolarização obrigatória, mas as empresas e organizações seguem exercendo um papel parecido – continuando a inculcar nas pessoas “colaboradoras” não apenas programas de educação corporativa impostos, como também toda uma mentalidade de autodesenvolvimento superficial e intimidatória.
Cada vez mais a responsabilidade por aprender está sendo debitada na conta do indivíduo. É ele quem deve tomar a iniciativa, correr atrás, aprender por conta própria. Se não faz isso, fica de fora, é excluído do sistema.
Percebe como isso faz parte do mesmo guarda-roupa da educação tradicional que já conhecemos?
Há mais de 40 anos, Ivan Illich já nos alertava que as sociedades ocidentais caminhavam no sentido de reproduzir padrões e normas da instituição escolar, compostas por notas, homogeneização, verdade única, obrigatoriedades, disciplinamento.
A aprendizagem ao longo da vida, quando vista restritamente sob óticas como a do dever e da competição mercadológica, nada mais é do que um reflexo modernoso da escolarização da sociedade.
Michel Foucault é outro que, ao denunciar as porosidades dos jogos de poder, esbarra forte na educação – e, mais recentemente, na necessidade sufocante do lifelong learning.
Julio Groppa Aquino, professor da Faculdade de Educação da USP, utiliza o pensamento de Foucault para delimitar o chamado “jogo do expert”:
Na esfera educacional, o jogo do expert dar-se-á especialmente por meio de um incansável trabalho de inculcação de ideais transcendentes que, repetidos à exaustão, se reduzirão a slogans do tipo: o dever/direito de desenvolver-se; a construção de uma vida melhor; o aprender a aprender etc. Slogans de vocação empreendedorística que a todos abarcariam, remetendo as existências escolares a um (auto)patrulhamento eterno e, por extensão, a um endividamento mais que voluntário: autoimpingido, autogerido e retroalimentador.
Ainda que o autor esteja se referindo especificamente à situação dos docentes, o jogo do expert é precisamente o que acontece quando nos culpamos por não concluir aquele MOOC de liderança.
Ou por nos sentirmos mal quando não lemos o livro do Eckhart Tolle até o fim.
É como se nos tornássemos sentinelas de nós mesmos em relação à nossa aprendizagem. Nunca está bom, nunca é o bastante, estamos sempre em dívida.
A grama da educação do vizinho – quer seja o seu perfil no LinkedIn ou a quantidade de livros lidos no Goodreads – é sempre mais verde.
Remando em outra direção
O mais interessante, contudo, é o alívio que o próprio Foucault nos aponta: sempre onde há poder (isto é, tentativas de governar pessoas, mesmo que autoinfligidas), há resistência.
Quando decidimos não completar um curso porque ele é extremamente chato ou resolvemos aprender algo de forma criativa – ou mesmo não aprender nada, afinal a vida não é um curso –, estamos resistindo ao jogo do expert.
Quando optamos por mergulhar em algo que desejamos, isto é, quando escolhemos responder à pergunta “O que eu quero aprender?” em vez de “O que eu deveria estar aprendendo?”, também estamos resistindo.
Já faz uns anos que minha mãe está se redescobrindo no crochê. Depois de anos e anos trabalhando exaustivamente como professora de matemática na Educação Básica, ela se aposentou e começou a bordar.
É impressionante como o encantamento dela pelo bordado aumenta todos os dias. Ela me envia fotos de cada trabalho finalizado e é nítido perceber sua evolução nessa atividade.
O crochê tem ajudado minha mãe a fazer novas amizades e a ressignificar sua vida depois de décadas de uma ocupação extenuante.
Os panos que ela produz não são para vender e o ato de bordar não é uma atividade rentável para ela. Minha mãe é um caso típico de alguém que, sim, está aprendendo ao longo da vida, mas não sob uma perspectiva voltada para a “empregabilidade” ou “educabilidade”, e sim a partir do próprio desejo. O bordado, para ela, é uma atividade autotélica.
Autotélico: que não apresenta qualquer finalidade ou objetivo fora ou para além de si mesmo.
A aprendizagem que acredito que pode mudar o mundo é de dentro para fora, e não de fora para dentro.
É baseada no querer e não no dever.
Óbvio que às vezes nos esforçamos para aprender algo não apenas porque desejamos, mas também porque consideramos aquilo importante ou necessário. Mas isso não deveria ser a regra.
Não deveria ser como se lê no texto de Carlos Souza:
Para nos mantermos competitivos, à frente do avanço tecnológico, precisamos aprender continuamente – modalidade de ensino chamada de aprendizagem contínua ou lifelong learning.
A vida não é só sobre aprender.
E aprender, no universo adulto, não é só sobre trabalho.
E, quando é sobre trabalho, não deveria ser somente para “adquirir” as “habilidades do novo milênio” (o que quer que isso signifique).
Que fique claro, de uma vez por todas: aprender é muito mais que isso.
Obs.: este post é uma versão atualizada e revista de um texto que escrevi em 2017.
🥱 Você, assim como eu, tem preguiça de narrativas do tipo “se você não aprender, se tornará alguém obsoleto?”
Qual é a sua leitura crítica sobre o conceito de aprendizagem ao longo da vida?
O que pensa e sente sobre isso? Me conta?
Oiê Alex... não tinha lido este texto anteriormente... mas depois que li... deu uma vontade de reler e reler uma grande inspiração sobre "aprender para dar sentido a vida".. sabe quem? Isto mesmo, Cora Coralina. Abraços.
Adorando a versão Alex filósofo hahah clarezas do espírito, esses prédios internos que construímos geram frutos, não é?