A Aceleração dos Vícios
Tradução de um texto de 2010 de Paul Graham que se tornou (infelizmente) ainda mais atual hoje.
O texto abaixo de Paul Graham (link para o original aqui) foi traduzido pelo ChatGPT, com revisão e ajustes finais meus.
Eu não concordo com todo o pensamento do autor neste texto, mas vejo que ele posiciona uma questão central importante, que inclusive dialoga com o meu “desabafo” de ontem e com temas que desejo explorar daqui pra frente.
Ao final, compartilho algumas reflexões que tive a partir da leitura.
A Aceleração dos Vícios
O que bebidas destiladas, cigarros, heroína e crack têm em comum é que todos são formas mais concentradas de seus predecessores menos viciantes. A maioria, se não todas as coisas que descrevemos como viciantes são assim. E a parte assustadora é que o processo que as criou está acelerando.
Não gostaríamos de interromper isso. É o mesmo processo que cura doenças: o progresso tecnológico. O progresso tecnológico significa fazer as coisas fazerem mais do que queremos. Quando o que queremos é algo que queremos querer, consideramos o progresso tecnológico algo bom. Se alguma nova técnica torna as células solares X% mais eficientes, isso parece estritamente melhor. Quando o progresso concentra algo que não queremos querer – quando transforma ópio em heroína –, ele nos parece ruim. Mas é o mesmo processo em ação. [1]
Ninguém duvida que esse processo está acelerando, o que significa que um número crescente de coisas que gostamos será transformado em coisas que gostamos demais. [2]
Até onde eu sei, não há uma palavra para algo que gostamos demais. A mais próxima é o sentido coloquial da palavra "viciante". Esse uso tem se tornado cada vez mais comum ao longo dos meus anos de vida. E é claro o porquê: há um número crescente de coisas que necessitam ser nomeadas dessa forma. No extremo do espectro podemos pensar em crack ou metanfetamina. A comida foi sendo transformada em algo com um retorno muito maior sobre o investimento por uma combinação de agricultura industrial e inovações no processamento de alimentos, e você pode ver os resultados disso em qualquer cidade da América. Jogos como Damas e Paciência foram substituídos por World of Warcraft e FarmVille. A TV se tornou muito mais envolvente, e mesmo assim não consegue competir com as redes sociais.
O mundo é mais viciante do que era há 40 anos. E a menos que as formas de progresso tecnológico que produziram essas coisas estejam sujeitas a leis diferentes do progresso tecnológico em geral, o mundo se tornará mais viciante nos próximos 40 anos do que foi nos últimos 40.
Os próximos 40 anos nos trarão coisas maravilhosas. Não quero sugerir que todas elas devem ser evitadas. O álcool é uma droga perigosa, mas prefiro viver em um mundo com vinho do que em um sem. A maioria das pessoas pode coexistir com o álcool; mas você precisa ser cauteloso. Mais coisas que gostamos significarão mais coisas com as quais teremos que ter cuidado.
Infelizmente, a maioria das pessoas não terá. O que significa que, à medida que o mundo se torna mais viciante, os dois significados do que é uma “vida normal” serão cada vez mais afastados um do outro. O primeiro sentido de "normal" é estatístico: o que todo mundo faz. O segundo é o sentido que usamos quando falamos sobre a operação normal de uma máquina: o que funciona bem.
Esses dois significados já estão bastante distantes. Alguém tentando viver bem hoje já pareceria excentricamente abstêmio na maior parte do país. Esse fenômeno só vai se pronunciar ainda mais. Você pode provavelmente considerar como uma regra geral daqui pra frente que, se as pessoas não acharem você esquisito, você provavelmente está vivendo mal.
As sociedades eventualmente desenvolvem anticorpos para coisas novas e viciantes. Eu vi isso acontecer com cigarros. Quando os cigarros surgiram, eles se espalharam como uma doença infecciosa se espalha por uma população anteriormente isolada. Fumar logo se tornou algo (estatisticamente) normal. Havia cinzeiros em todos os lugares. Tínhamos cinzeiros em nossa casa quando eu era criança, mesmo que nenhum dos meus pais fumasse. Era necessário para quem viesse nos visitar.
À medida que o conhecimento sobre os perigos do tabagismo se espalhou, os costumes mudaram. Nos últimos 20 anos, fumar foi transformado de algo que parecia totalmente normal em um hábito bastante degradante: de algo que estrelas de cinema faziam em fotos publicitárias para algo que pequenos grupos de viciades fazem do lado de fora de prédios corporativos. Grande parte da mudança se deveu à legislação, é claro, mas a legislação não poderia ter acontecido se os costumes não tivessem mudado primeiro.
No entanto, levou um bom tempo – da ordem de 100 anos. E a menos que a taxa com a qual os anticorpos sociais evoluem possa aumentar para acompanhar a taxa acelerada com a qual o progresso tecnológico gera novos vícios, seremos cada vez mais incapazes de contar com as mudanças dos costumes para nos proteger. [3] A menos que queiramos ser cobaias de cada nova tendência viciante – as pessoas cujo triste exemplo se torna uma lição para as gerações futuras –, teremos que descobrir por nós mesmes o que evitar e como. Na verdade, uma estratégia razoável (ou uma estratégia mais razoável) seria suspeitar de tudo que é novo.
De fato, mesmo isso não será suficiente. Teremos que nos preocupar não apenas com coisas novas, mas também com coisas existentes que se tornarão mais viciantes. Foi isso que me afetou. Consegui evitar a maioria dos vícios, mas a internet me pegou porque se tornou mais e mais viciante enquanto eu a usava. [4]
A maioria das pessoas que conheço tem problemas com algum vício relacionado à internet. Estamos todes tentando descobrir nossos próprios jeitos de nos libertarmos dela. É por isso que não tenho um smartphone, por exemplo; a última coisa que quero é que a internet me acompanhe mundo afora. [5] [nota: o texto foi escrito em 2010] Meu truque mais recente é fazer longas caminhadas. Eu costumava achar que correr era uma forma melhor de exercício do que caminhar porque tomava menos tempo. Agora, a lentidão das caminhadas me parece uma vantagem, porque quanto mais tempo passo andando, mais tempo tenho para pensar sem interrupções.
Parece bem excêntrico, não é? Sempre parecerá quando você estiver tentando resolver problemas para os quais ainda não existem comportamentos majoritários para guiá-lo. Talvez eu não possa invocar a navalha de Ockham: pode ser que eu seja simplesmente excêntrico, mesmo. Mas se eu estiver certo sobre a aceleração dos vícios, então esse tipo de esforço solitário para evitá-la será cada vez mais o destino de quem deseja de fato realizar coisas. Seremos cada vez mais definides por aquilo que dizemos não.
Notas
[1] Você poderia restringir o progresso tecnológico somente para áreas onde você o deseja? Apenas de forma limitada – a não ser que se criasse um Estado policial. E, mesmo assim, as restrições teriam efeitos colaterais indesejáveis. Progresso tecnológico "bom" e "ruim" não são nitidamente diferenciados, então você descobriria que não poderia desacelerar o último sem também desacelerar o primeiro. E em qualquer um dos casos, como mostram a proibição e a "guerra às drogas", imposições desse tipo frequentemente fazem mais mal do que bem.
[2] A tecnologia sempre foi acelerada. De acordo com os padrões paleolíticos, a tecnologia evoluiu a uma velocidade alucinante no período neolítico.
[3] A menos que conseguíssemos produzir costumes sociais em massa. Suspeito que o recente ressurgimento do cristianismo evangélico nos EUA seja parcialmente uma reação às drogas. Na desesperança, as pessoas recorrem ao martelo pesado; se seus filhes não as ouvirem, talvez ouçam a voz de Deus. Mas essa solução tem consequências mais amplas do que simplesmente fazer com que crianças e adolescentes digam não às drogas. Você acaba dizendo não à ciência também.
Me preocupa que possamos estar caminhando para um futuro em que apenas algumas pessoas sejam capazes de traçar seu próprio itinerário de vida, enquanto todas as outras “reservem um pacote turístico”. Ou, pior ainda, tenham um reservado para elas pelo governo.
[4] As pessoas costumam usar a palavra "procrastinação" para descrever o que fazem na internet. Me parece algo muito brando descrever o que está acontecendo como meramente “adiando o trabalho”. Não chamamos de procrastinação quando alguém fica bêbado em vez de trabalhar.
[5] Várias pessoas me disseram que gostam de tablets porque ele permite levar a internet para situações onde um laptop seria muito chamativo. Em outras palavras, é um frasco de bebida. (Isso é verdade também para os smartphones, é claro, mas isso não é tão óbvio porque ele é visto como um celular, e todo mundo já está acostumado com eles)
Meus agradecimentos a Sam Altman, Patrick Collison, Jessica Livingston e Robert Morris por lerem os rascunhos deste texto.
Comentários Bretológicos
É no mínimo curioso que Sam Altman tenha sido um revisor deste texto – sim, o mesmo Sam que hoje comanda a empresa de Inteligência Artificial mais famosa do mundo (OpenAI).
De 2010 pra cá, não foi só Sam Altman que mudou bastante. O mundo também se tornou um lugar bem mais viciante e nós não evoluímos nem nossos costumes nem nossas leis, o que só atesta o argumento central de Paul Graham no texto.
O autor parece defender com unhas e dentes o progresso tecnológico – era de se esperar, já que estamos falando de um investidor de tecnologia –, mesmo defendendo eventualmente a existência de leis mais duras para enfrentar as novas tecnologias mais viciantes. Prefere viver num mundo com vinho do que sem.
Consigo entender isso, mas discordo veementemente: ao meu ver, esta é uma visão bastante ingênua (no sentido de pouco crítica) sobre a tecnologia, e também bastante ocidental.
Como escrevi no artigo A história não contada da inteligência artificial generativa – em que eu discuto não apenas IA, e sim o pano de fundo mais amplo relacionado aos impactos das tecnologias do Ocidente –, a ideia de “progresso” tecnológico é, sobretudo, uma estratégia de domínio neocolonialista. Nesse contexto, novas tecnologias aparecem revestidas por um salvacionismo, como se fossem a última bolacha do pacote, quando na verdade acabam por apagar outros modos de vida, produção e organização social, que são automaticamente lidos como “atrasados” ou “inferiores”.
A discussão sobre ser possível ou não parar/reduzir/controlar o avanço das tecnologias, embora relevante, é apresentada de forma reducionista, pois generaliza o debate e, assim, perdemos de vista a miríade de caminhos que podem se dar nos entremeios, nos microespaços: em experimentos sociais, em iniciativas de ativismo, em comunidades intencionais e até mesmo no contexto de cidades e territórios.
A realidade é mais granular e sociologicamente mais complexa do que a visão binarista que o autor apresenta no que se refere à possibilidade de brecar ou não a tecnologia.
Ainda assim, o que me motivou a traduzir este texto é a aproximação bem substanciada entre tecnologia e vício, além da constatação (muito bem exposta) de que provavelmente teremos um mundo cada vez mais viciante – o TikTok está aí para provar.
A saída proposta por Graham, embora individualista – cada pessoa deve entender como se tornar “esquisito” para poder viver bem, suspeitando de tudo que é novo –, é apresentada de uma forma original. E como infelizmente eu não conheço caminhos de transformação mais estruturais (passando por governo, instituições, isto é, realmente mexendo no sistema) no tocante a essa questão da tecnologia, as proposições que recaem sobre o limitado poder de escolha do indivíduo acabam sendo quase a única rota de ação. (Me corrijam se eu estiver errado! Adoraria estar)
Meu intuito com a tradução do texto e os comentários que fiz é suscitar uma conversa.
Esse tema atravessa nossas vidas de jeitos muito cotidianos e, ao mesmo tempo, viscerais.
Algumas questões para conversarmos:
O que você pensa e sente a partir disso tudo?
Como as tecnologias digitais te atravessam na vida prática e na vida simbólica?
Quais vícios você sente que vem carregando e tem dificuldade em largar?
O que podemos fazer como indivíduos e sociedade para frear a aceleração dos vícios?
Como reverter esse cenário pensando sobretudo nas futuras gerações?
A rede social tem o mesmo mecanismo desses jogos de azar que estão popularizados hoje. Mas o mais perigoso é que não é tão perceptível, é sútil. É algo muito poderoso, elaborado pra mexer com a nossa mente é nosso cérebro não tá tão preparado pra isso.
Hoje não existe mais uma verdade, a ideia é passar a mensagem que mais vai chamar atenção, que tem a melhor narrativa, mesmo que seja uma informação falsa.