Boletim, burnout e boas maneiras: tudo começa na escola
8 tirinhas que a educação tradicional e o trabalho não querem que você leia
📢 ATENÇÃO: este post é um trecho do meu próximo livro, A2C: Aprendizagem Autodirigida em Comunidade (título provisório).
Estou escrevendo esse livro "a céu aberto” e você pode me acompanhar nessa aventura: é só apoiar a partir de R$ 15 reais. Saiba mais aqui.
Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras. Embora eu não veja sentido nessa comparação, pois imagens são feitas de palavras e vice-versa, algumas figuras realmente fecundam nossas conversas de mundo. É por isso que, quando problematizo questões da educação tradicional, adoro usar tirinhas. Tenho uma farta coleção delas e, a seguir, vou mostrá-las assim como a promotoria apresenta suas provas de acusação. Cada tirinha acompanha uma descrição e um breve comentário meu – embora nem precisasse, pois elas falam por si mesmas.
Espero que, ao final desse passeio imagético, você possa ter a dimensão do buraco em que estamos enfiados.
Escola é aquário, educação é oceano

Descrição: Peixinhos entediados dentro do aquário “Escola”, que por acaso está dentro do oceano (!). No oceano, o peixe grande “Educação” nada feliz e tranquilo. O aquário até tem uma saída, mas os peixinhos parecem muito atordoados para vê-la.
As possibilidades de se educar estão em todos os lugares. E não é porque agora temos internet no bolso e inteligência artificial. O compasso da vida é seguir aprendendo como correm as águas de um rio, sempre foi assim. Não há um botão de liga-desliga na capacidade de expansão de mentes e corações. A escola e todos os espaços educacionais que ela colonizou constroem um muro entre a realidade e o “pedagógico”. E o pior: onde esses muros crescem é dentro da gente.
Aprendendo na marra
Descrição: Um menino na guilhotina, podendo ser decapitado a qualquer momento caso não leia o livro que o adulto – possivelmente seu professor – obriga que ele leia.
A ideia de que é preciso obrigar ou coagir alguém a “aprender” é quase onipresente na educação tradicional. Não se questiona essa premissa, até porque o preço é alto para quem se atreve. O que se desdobra desse autoritarismo é algo obsceno: o sujeito passa a acreditar que disciplina, rigor e dedicação só acontecem com a corda no pescoço. Helena Singer1 nos conta que a disciplina pode ser de dois tipos: a do exército e a da orquestra. A primeira, imposta como um poder-sobre, domina e reprime, ao passo que a segunda, livremente escolhida como um poder-com, organiza e dá corpo.
Nota 0 na escola, nota 10 na vida
Descrição: Um professor explicando a um pai e uma mãe que sua filha recebeu nota ruim por ficar o tempo todo olhando para o espaço. No segundo quadrinho, a mesma aluna, agora adulta, recebe uma medalha em um congresso de astronomia pelo mesmo motivo.
Que ironia, não? A escolarização – aquela que supostamente amplia os conhecimentos – nos faz acreditar que somente um pequeno conjunto de saberes são válidos. O resto é conversa pra boi dormir: melhor nem perder seu tempo. Ocorre que, na vida real, relâmpagos caem em céus limpos. O caminho se abre é a cada passo. Não se pode prever como a vida de alguém vai desabrochar: às vezes são as inadequações que nos dão asas.
O consolo do prisioneiro
Descrição: Um papagaio na gaiola começa a xingar, vangloriando-se de ser politicamente incorreto. Os xingamentos são vários e refletem opressões arraigadas na sociedade: “gorda”, “anão”, “viado”, “preto”, “feia”, aleijado”, “baiano”. Dois passarinhos assistem à cena e arrematam: “É o consolo do prisioneiro”.
Papagaios intolerantes e falastrões, desses que normalizam cotidianamente atos de violência, são sequelas de uma educação que os cria em gaiolas. Aprendemos desde cedo a ser outrofóbicos2, rechaçando tudo que não é espelho. O odor de competição que exala das carteiras escolares transmite pelo ar uma asfixiante lição – antes ferir do que ser ferido ou ferida, antes ela ou ele do que eu. Sujeitos vítimas por muito tempo do comando-e-controle tornam-se das duas, uma: passivos ou agressivos. Às vezes, os dois.
Conhecimento escritorial
Descrição: Dois personagens da série de desenho animado Toy Story, Buzz Lightyear e Woody, conversam. O primeiro aponta os dedos para longe e diz animadamente para um Woody receoso: “A mesa de escritório é um lugar perigoso de onde se ver o mundo”.
Poderia ser também a cadeira da sala de aula (a irmã mais nova da mesa de escritório). Não é estranho como o mundo funciona? Assumimos que é possível conhecê-lo sem sair para vê-lo e vivenciá-lo de fato. E aí tiramos conclusões a partir desse conhecimento “escritorial” – ou escolarizado – de mundo. Perigosíssimo. O pior é que ficamos que nem o Woody: com um medo, às vezes irreconciliável, de sair do conforto para se banhar de outras águas. Além de querer dar um banho de água fria em qualquer pessoa corajosa o suficiente para se levantar da mesa.
Os produtos somos nós
Descrição: Dinho, personagem do jornalista brasileiro Alexandre Beck, está na sala de aula e escuta de alguém, possivelmente um diretor ou professor: “Nossa escola vai preparar vocês para o mercado!” Dinho imediatamente levanta a mão com uma pergunta: “Então a gente vai se esforçar tanto… pra depois ser consumido?”
A espécie humana passou 99% do tempo no planeta vivendo em culturas de subsistência, antes da tal “lógica de mercado” surgir. E o que você acha que nossos ancestrais faziam depois de coletar, caçar e construir? Descansavam. Viviam. Criavam arte, ritos, festejos, saberes e sociabilidades. O ritmo frenético do trabalho moderno e tudo que vem no pacote – o culto à performance, a obsessão com o “progresso”, a eterna pressa – são subprodutos da máxima que Dinho descobriu: na sociedade de mercado, os produtos somos nós.
Trabalho: ideia de quem?
Descrição: Charlie Brown, criação do cartunista americano Charles M. Schulz, e Sally, sua irmã caçula, estão parados numa estrada olhando os carros. Ela pergunta: “Quem são todas essas pessoas nos carros?” Charlie responde: “Elas estão indo para o trabalho”. Sally fica confusa e pergunta de volta: “Trabalho?” Charlie então explica: “É, elas iam à escola, como nós. E agora têm de ir trabalhar, até o fim da vida delas”. Sally reage, perplexa: “Nossa! E isso foi ideia de quem?”
A esta altura já deve ter ficado nítida a relação simbiótica entre a escolarização e o trabalho como o conhecemos. Trabalhar, em geral, é a conformidade ao que se espera, “jogar o jogo” e se acostumar com ele, produzir. A escola nos prepara exemplarmente para isso, até porque ela também é isso. A simbiose ocorre e nos parasita: nem crianças nem pessoas adultas conseguem viver com vagareza os prazeres, as aventuras e as aprendizagens que lhes batem à porta. E todo mundo deve fingir anuência a essa romaria diária, mesmo sofrendo.
Poupança apocalíptica
Descrição: Numa paisagem desértica e apocalíptica, um pai mostra um saco de dinheiro para uma criança e diz: “Aqui está, meu filho, eu guardei todo esse dinheiro para o seu futuro”. A criança veste uma máscara e carrega um cilindro de oxigênio nas costas.
Estamos a beira do colapso. E tudo que aprendemos na escola é sobre reproduzir o que já existe. Os mesmos jeitos de pensar que produziram a crise não são os que nos tirarão dela. Nem dinheiro nem curtidas nem harmonizações faciais vão nos salvar. O abismo se agiganta dentro e fora de nós, a psique e o solo estão áridos. Mudanças duradouras não surgem com um ensinamento novo. Requerem um processo de reentendimento – e reencantamento – de si e do mundo. E isso nunca se faz só.
Gostou? Você pode ser parte do nascimento desse livro a partir de R$ 15.
Me ajude a derrotar minha acrasia apoiando o financiamento coletivo do livro da Aprendizagem Autodirigida em Comunidade (A2C).
Em seu livro “República de Crianças: sobre experiências escolares de resistência”.
Outrofobia é um conceito do escritor Alex Castro.
Triste porém real
Gostei pacas dessas tirinhas!
Compartilhando!