đ„Ł Um pot-pourri sobre fazer coisas difĂceis na vida
6 sabedorias do meu segundo cérebro
Na maratona mais extenuante do mundo no deserto do Saara, existe uma regra simples: se os camelos te alcançarem, vocĂȘ estĂĄ fora da corrida đ«
Imagina sĂł: uma corrida de 250 km com dunas que se movem, rajadas de vento cortante, temperaturas extremas e muita, mas muita areia!
Por que as pessoas escolhem fazer isso?
HĂĄ algo de fascinante em se propor a fazer coisas difĂceis.
VocĂȘ pode nunca correr uma maratona no Saara e nem mesmo praticar esporte, mas ainda assim Ă© possĂvel que esteja executando (ou buscando executar) alguma coisa difĂcil na sua vida agora â quer seja por pura vontade de testar seus limites, por um propĂłsito que vocĂȘ acredita e/ou por força das circunstĂąncias.
đ§ No meu segundo cĂ©rebro, fui colecionando uma sĂ©rie de sabedorias sobre âfazer coisas difĂceisâ (inclusive a histĂłria da maratona que acabei de contar).
O que compartilho abaixo Ă© um pequeno pot-pourri sobre o tema retirado diretamente do meu âintestino criativoâ.
1. Porque realizar coisas difĂceis Ă© importante
(vi em um dos e-mails do James Clear)
O empreendedor Nat Eliason sobre a importĂąncia de se desafiar a fazer coisas difĂceis:
âA capacidade de fazer coisas difĂceis Ă© talvez a habilidade mais Ăștil que vocĂȘ pode fomentar em vocĂȘ mesme e em seus filhes. E a prova de que vocĂȘ Ă© capaz disso Ă© um dos bens mais Ășteis que vocĂȘ pode ter em seu portfĂłlio de vida.
Nossa autoimagem Ă© composta por um histĂłrico de evidĂȘncias das nossas habilidades. Quanto mais coisas difĂceis vocĂȘ se esforça em fazer, mais competente vocĂȘ se perceberĂĄ.
Se vocĂȘ consegue correr maratonas ou levantar o dobro do seu peso acima da cabeça, a privação de sono ocasionada por um bebĂȘ serĂĄ apenas uma irritação leve. Se vocĂȘ consegue ser excelente em quĂmica orgĂąnica ou econometria, a entrada em um novo emprego serĂĄ moleza.
Mas se evitarmos coisas difĂceis, qualquer coisa ligeiramente desafiadora nos parecerĂĄ intransponĂvel. Mergulharemos indefinidamente no TikTok toda vez que pegarmos no celular para enviar uma mensagem. Nos veremos incapazes de aprender novas habilidades, assumir novas carreiras e escapar de situaçÔes ruins.
A prova de que vocĂȘ pode fazer coisas difĂceis Ă© um dos presentes mais poderosos que vocĂȘ pode dar a si mesme.â
đĄ ComentĂĄrio: eu gosto da visĂŁo dele, embora o tom seja um pouco meritocrĂĄtico. Faz sentido psicologicamente se pensarmos no conceito de crenças de autoeficĂĄcia do Albert Bandura, especialmente no aspecto da experiĂȘncia direta (as pessoas formam seus juĂzos sobre suas capacidades a partir do que entendem que conseguiram ou nĂŁo executar anteriormente).
2. Divirta-se, mesmo sendo difĂcil
O prĂłprio James Clear, em mais um dos seus e-mails, sobre um tipo de mentalidade interessante ao realizar algo desafiador:
Quando vocĂȘ estiver fazendo algo difĂcil, foque na parte divertida.
Muitas pessoas cometem um erro sutil: enfatizar o quĂŁo difĂcil Ă© fazer algo. Elas dizem a si mesmas que escrever Ă© difĂcil, correr Ă© difĂcil ou matemĂĄtica Ă© difĂcil. E assim por diante. O pensamento dominante em suas cabeças Ă© que aquela coisa Ă© muito difĂcil de fazer.
E Ă© verdade que essas coisas, e muitas outras na vida, podem ser de fato desafiadoras.
Por outro lado, pessoas que florescem em uma determinada ĂĄrea muitas vezes enfatizam um aspecto completamente diferente da experiĂȘncia. Elas estĂŁo pensando em como se sentem bem em movimentar o corpo, em vez de dizerem a si mesmas que se exercitar Ă© difĂcil. Ou pode ser que elas nem estejam realmente pensando muito. Elas podem atĂ© entrar em transe durante uma corrida, encontrando um ritmo meditativo.
O que quase certamente essas pessoas nĂŁo estĂŁo fazendo Ă© repetir uma histĂłria mental sobre como Ă© difĂcil realizar a ação. Seu pensamento prevalecente Ă© em algum elemento da experiĂȘncia que apreciam. Elas estĂŁo trabalhando duro, mas com a parte divertida em mente.
đĄ ComentĂĄrio: nunca Ă© apenas sobre âtransformar seu mindsetâ ou qualquer outra baboseira parecida, mas, ao mesmo tempo, a maneira pela qual escolhemos âenquadrarâ uma situação mentalmente nĂŁo Ă© desprezĂvel. Na minha prĂłpria vivĂȘncia, o fato de realçar a diversĂŁo e a âinteressĂąnciaâ das coisas difĂceis que estou fazendo tem me ajudado bastante a encarar esses processos com mais leveza.
3. Nem tudo Ă© sobre acumular conhecimento
James Clear, mais uma vez:
âNa maioria das vezes vocĂȘ nĂŁo precisa de mais informaçÔes; vocĂȘ precisa de mais coragemâ
đĄ ComentĂĄrio: autoexplicativo, eu diria. Complementando, penso que a coragem de que ele fala Ă© de dois tipos: a de começar algo difĂcil e a de sustentar algo difĂcil.
4. O âdifĂcilâ Ă© sempre contextual
Meu amigo Cali, uma das pessoas mais intencionais e profundas que eu conheço:
âDificilmente as pessoas conseguem desempenhar melhor do que o seu ambiente permite e do que ele as inclina a se comportaremâ
đĄ ComentĂĄrio: isso importa muito quando estamos falando em realizar coisas difĂceis. Pode ser que uma coisa extremamente desafiadora pra vocĂȘ em um dado contexto (cultural, relacional, espacial, geogrĂĄfico etc) seja atĂ© fĂĄcil em outro, e vice-versa. E vocĂȘ pode, atĂ© certo ponto, aprender a manipular seu ambiente de modo a tornar menos difĂcil aquilo que deseja realizar.
Mais alguns textos sobre o assunto:
A escolha mais importante que vocĂȘ pode fazer (um artigo incrĂvel da Marcelle Xavier sobre como nossos contextos relacionais nos moldam)
5. Fazer algo difĂcil Ă© uma aventura
Uma fala de outro amigo querido, o Patrick, que estĂĄ vivendo uma vida itinerante:
"A aventura estimula as pessoas a serem outras coisas"
đĄ ComentĂĄrio: eu escrevi sobre aventura recentemente por aqui, e tambĂ©m em dois dos meus livros, 25 Comportamentos de Aprendizes Autodirigidos Altamente Eficazes e Se Joga Que Aqui Tem Rede. Esse compartilhamento do Patrick me atravessou porque Ă© bem isso que acontece: quando nos aventuramos â e fazer algo difĂcil com frequĂȘncia pode ser encarado como uma aventura â, encontramos novas elaboraçÔes de nĂłs mesmes, e isso Ă© enriquecedor.
6. Nosso sistema gera âdificuldades estruturaisâ
Uma foto que tirei do celular do Ciano, outro amigo, quando ele me apresentava sua investigação sobre pedagogia marginal (a imagem estå ruim, depois vou pedir a ele uma com a qualidade melhor):
đĄ ComentĂĄrio: basicamente o Ciano propĂ”e uma metĂĄfora para explicar a ideia de problemas estruturais, representados por bolos, ao passo que cada fatia corresponde a um recorte ou perspectiva especĂfica que podemos ter sobre esse bolo. A fĂĄbrica de bolos seria entĂŁo o nosso sistema social-econĂŽmico-cultural, gerador ininterrupto de opressĂ”es e desigualdades sistĂȘmicas.
Eu acho incrĂvel a capacidade do Ciano de revelar a aridez do mundo de uma forma leve e facilmente compreensĂvel đ€Ż
Ă importante lembrar, a partir desse entendimento proposto por ele, que grupos minorizados sĂŁo oprimidos o tempo todo e de diferentes maneiras pela âfĂĄbrica de bolosâ, e que isso os impele a fazer coisas difĂceis quase continuamente, nĂŁo numa perspectiva de âaventuraâ ou por escolha prĂłpria, e sim por sobrevivĂȘncia. Dessa forma, quando essas pessoas optam por fazer algo difĂcil porque querem, Ă© ainda mais difĂcil (e Ă s vezes impossĂvel). A impossibilidade, quando ocorre, obviamente nĂŁo se dĂĄ por uma falta de capacidade, e sim por falta de acesso a direitos.
Pois bem, esse foi o meu raciocĂnio sobre âfazer coisas difĂceisâ derivado do meu segundo cĂ©rebro.
Como chega aĂ pra vocĂȘ? đ
Obs.: a corrida que cito no inĂcio Ă© a Maratona das Areias (Marathon des Sables), realizada no sul do Marrocos e cuja distĂąncia equivale a 6 maratonas regulares em 7 dias no meio do deserto do Saara đ©â
Para saber mais sobre a prova, vale assistir o primeiro episĂłdio do documentĂĄrio Human Playground na Netflix.