Florianópolis, 23 de julho de 2024.
Querida pessoa leitora, te trago algumas perguntas:
Sua empresa ou organização faz panapaná?
Sua escola ou universidade faz panapaná?
Sua comunidade – ou até mesmo seu grupo de amigues – faz panapaná?
Não?
Então meu convite com esta primeira carta é: comece a fazer panapaná.
Panapaná é uma palavra de origem tupi que quer dizer “grupo de borboletas revoando”.
É mais ou menos isso:
Bem bonito, né? Borboletas voando juntas, cada uma com sua beleza, em uma mesma direção!
Borboletas fazem isso com frequência para povoar lugares essenciais na sua nutrição, descanso e reprodução.
Panapaná é um fenômeno da natureza que enche nossos olhos de encantamento.
A palavra também é boa, gostosa de falar, exuberante.
(Agradeço à minha amiga Isa – e ao nosso famigerado grupo de Palavras Gostosas – por me ensiná-la. E agradeço também à Vivi, que presenteou a Isa com esse delicioso vocábulo)
Escolhi panapaná para nomear o novo quadro filosófico, conceitual e metodológico que estou criando.
Panapaná, nos contornos do que estou propondo aqui, quer dizer um sistema de práticas – ou uma tecnologia social – que pode ser ativada em qualquer agrupamento humano e que, uma vez instalada, começa a fazer “borboletas voarem em bando”.
“Borboletas voarem em bando”? Como assim?
Borboletas são os animais que talvez mais evoquem a ideia de transformação na nossa cultura.
A metamorfose das lagartas para se tornarem borboletas é uma imagem muito utilizada para simbolizar processos humanos de transição, mudança e guinada para novos futuros.
No entanto, essa metáfora geralmente assume um caráter individualizante, alienante e neoliberal.
“Você é quem deve realizar a sua própria transformação! Vai, você consegue! É só se esforçar mais!”
Não é à toa que é utilizada a rodo por coaches e terapeutas e pseudoprofissionais por aí.
(Nada contra quem trabalha com desenvolvimento humano em todas as suas vertentes, mas sabemos que existe muita enganação e superficialidade nesse campo)
O que apresento aqui é um caminho para criar sistemas de “supervivência” e transformação coletivos. Sistemas que façam as pessoas se envolverem com a construção de novos futuros dentro dos contextos nos quais já habitam.
Sistemas contínuos de investigação e aprendizagem pela descoberta; sistemas de apoio mútuo, cuidado, generosidade e solidariedade; sistemas de experimentação e criatividade; sistemas de produção artística, apreciação e contemplação; sistemas de celebração, festejo e alegria; sistemas de promoção de saúde em vez do tradicional foco na doença; sistemas de criação de significado, compartilhamento de histórias e senso de comunidade; sistemas de reuso e partilha de objetos e recursos; sistemas de reimaginação coletiva – dentre outras categorias a serem mapeadas e desenvolvidas.
Isso é panapaná – basicamente tudo aquilo que sabemos que é importante para nos encantar e, assim, metamorfosear o futuro, mas que não priorizamos na maioria dos espaços sociais, educacionais e profissionais nos quais estamos inserides.
E por que não priorizamos?
A resposta é longa e complexa, mas uma premissa básica, que já comecei a explorar em textos anteriores, tem a ver com a maneira que enxergamos e usamos o tempo – somos pressionades a estar sempre com pressa, sempre “correndo”, sempre desantentes, sempre “sobrevivendo” e quase nunca “vivendo”.
Nosso modelo econômico e cultural nos pressiona a todo momento (e por todos os lados) nesse sentido. É difícil escapar.
Estamos sempre “apagando incêndios”. Sempre ocupades com o presente – não num sentido positivo de “hojear”, como diz meu amigo André Gravatá, mas num sentido pesado de “dar conta”. A pessoa adulta é a pessoa que “dá conta”. Que carrega o fardo. Que tenta desesperadamente não se afogar em seu mar de responsabilidades individuais, familiares e profissionais porque, bem, “a vida é assim mesmo”.
O primeiro passo para fazer panapaná é sair somente do “dar conta” para o “dar-se conta”.
Dar-se conta de que essas opressões não são “naturais”. Elas são fabricadas culturalmente.
Dar-se conta de que “o futuro não é um lugar para onde estamos indo, e sim um lugar que estamos criando”, e que “o caminho para o futuro não é encontrado, e sim construído” (Antoine de Saint-Exupéry).
Dar-se conta de que somente saídas individuais não dão conta – e acabam reforçando a narrativa meritocrática dominante. Precisamos pensar caminhos coletivos (dando espaço e autonomia para as caminhadas individuais).
O sistema hegemônico está preocupado em “gerar resultados”. Isso se alastra também para nossas mentalidades individuais. Assim, preocupades demais com o “chegar lá”, nos esquecemos do “aqui e agora”.
Preocupades demais com o que nos disseram que é importante, nos esquecemos das coisas desimportantes que no fundo são as mais importantes.
“Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso”
(Manoel de Barros)
Repare no paradoxo: somos pressionades a habitar um presente perpétuo e sufocante, que não nos abre brechas para hojear o futuro. Ao mesmo tempo, o modelo de vida ocidental nos desertifica em nossa relação com o amanhã, pois “alcançar resultados” – ou minimamente sobreviver – é tudo que nos é permitido.
A vida é o que acontece enquanto estamos preocupades demais em atingir metas e fazer o que esperam de nós. Ou enquanto tentamos colocar a cabeça fora d’água (leia-se: pagar os boletos).
Nesse contexto social árido, panapaná pode ser entendido como um “sistema paralelo” de geração de encantamentos – um moinho para produzir as coisas que realmente fazem brotar Vida.
As pessoas precisam se organizar para isso. É um ato de resistência e, também, de desobediência.
Panapaná não se propõe a destruir o que está posto, por algumas razões:
Não me parece razoavelmente possível;
A força utilizada para tentar destruir pode ser canalizada para construir;
“Para mudar algo é preciso construir um modelo novo que tornará o modelo atual obsoleto” (Buckminster Fuller) – eu não acredito – infelizmente – que o modelo atual se tornará obsoleto, mas pelo menos panapaná pode nos ajudar a resistir e a reimaginar, além de possibilitar que vivamos melhor no atual estado de coisas
Panapaná é um processo de envolvimento. Não pode ser forçado. É, também, um processo de contágio. Quando as pessoas veem outras se organizando em panapaná, elas ficam com vontade de se ajuntar e borboletarem também.
Panapaná é também um léxico compartilhado, pois aponta para o conjunto de coisas que geram vitalidade e transformação, mas que frequentemente não fazemos.
(Não porque não queremos, mas porque fomos capturades pelas exigências da vida sem V maiúsculo)
Fazer panapaná é tipo fazer um puxadinho: você constrói um novo espaço na sua casa com os recursos de que dispõe, e vai melhorando ele com o tempo.
Esse novo espaço pode ser o que você quiser, desde que gere Vida. Desde que contribua para você se alegrar, aprender, saborear, superviver. E é claro que outras pessoas poderão construir e desfrutar desse puxadinho também, pois é impossível “superviver” sozinhe.
Apontando para a importância das relações, Margaret Wheatley elaborou uma ideia que eu adoro:
“A inteligência emerge na medida em que o sistema se conecta com ele mesmo de formas diversas e criativas”.
Panapaná é uma forma de interconectar sistemas humanos de formas diversas e criativas – assim como as borboletas se aproximam, se distanciam e encostam umas nas outras quando voam em bando.
Panapaná também é um convite para fazermos o que geralmente não é feito, e por isso adoecemos, psíquica e e corporalmente. De contrapor o uso do tempo, saindo de um universo apenas “produtivo” rumo a uma temporalidade mais “poética” e “criativa”.
Ah, e nisso tudo panapaná também nos convida a desacelerar, pois qualquer coisa apressada significaria mais do mesmo que já não aguentamos mais.
Ao longo da minha trajetória de pesquisa nos últimos 10 anos, a real é que vivenciei e registrei muito mais do que apenas intervenções “de aprendizagem”.
O livro Kit Educação Fora da Caixa, o primeiro que escrevi, em 2015, atesta isso. Você vai ver todo tipo de coisas lá, de processos de colaboração à arte, passando por formatos alternativos de conversa, tomada de decisão e até captação de recursos.
Desde o início, percebi que a aprendizagem é um fenômeno complexo que dialoga com vários outros o tempo todo. Nunca me interessou muito pensar o aprendizado como algo eminentemente técnico, instrumental, objetivo, que serve somente para te levar do ponto A ao ponto B em uma escala cognitiva.
A verdade é que eu não estou mais interessado em processos de desenvolvimento; prefiro processos de envolvimento. Relendo antigas produções minhas como o livro do doutorado informal, constatei que isso não é de hoje: esse olhar sempre esteve lá – ou melhor, aqui dentro.
Chegou a hora de explorar essa amplitude mais a fundo. E panapaná é um caminho para adentrar nessa busca.
Nas próximas cartas, pretendo aprofundar mais no conceito e em como ele pode se desdobrar em categorias e caminhos de ação. Muitas coisas podem brotar disso, e eu estou curioso para testemunhar o que vem por aí.
Pretendo investigar daqui em diante os “porquês”, os “o quês” e os “comos” que se inserem na proposta de panapaná. Minha intenção é descortinar um quadro de referência para qualquer pessoa, grupo ou organização que queira fazer panapaná, tornando esse processo o mais provável e potente possível.
Com o tempo, teremos disponível uma miríade de experiências de panapaná que poderemos conhecer e nos inspirar. E talvez uma rede de pessoas que se encontram de tempos em tempos para trocar sobre o que estão panapanando e como estão panapanando.
E aí, borboleta, como chega tudo isso pra você?
Panapaná te entusiasma? De que forma?
Pra mim é muito importante saber o que você pensa e sente sobre. As percepções que só você pode trazer vão me ajudar muito a evoluir essa ideia.
Então, se puder tirar um tempinho para participar desse voo coletivo, deixe um comentário. Fale a partir do seu coração e traga a sua voz para a conversa.
Vamos tecendo essa maluquice juntes.
Até semana que vem!
Alex.
adorei o 'sair somente do “dar conta” para o “dar-se conta”. Acho tudo que escreveu muito pertinente e essencial. gosto de ler seus textos porque provoca boas reflexões.
Vou ficar com o "dar-se conta", digerindo aqui. Potente!